Em 2007, o mundo e a cultura pop eram bem diferentes. O Batman das telonas era Christian Bale, o Coringa de Heath Ledger ainda provocava insegurança em muito fã por aí, Robert Downey Jr. não tinha dito que é o Homem de Ferro e, portanto, nenhum vestígio do que viria a ser o Universo Cinematográfico da Marvel (MCU) se apresentava com clareza. Como referencial de grandeza nas franquias de super-heróis havia dois colossos: os altos e baixos dos filmes dos X-Men, da então 20th Century Fox, e a trilogia Homem-Aranha de Sam Raimi, produzida pela Sony.
Foi nesse contexto que o mesmo estúdio que até hoje é a casa do Teioso nas telonas decidiu diversificar sua produção. Resgatando um projeto que se arrastava desde os anos 1990, e aproveitando direitos de personagem adquiridos pouco tempo após a virada do milênio, a Sony decidiu mergulhar no lado mais oculto das histórias da Casa das Ideias e levar às telonas o Motoqueiro Fantasma. O resultado foi o bizarro filme homônimo lançado em 2007, uma pasteurização infantilizada de um dos personagens mais soturnos e adultos da editora, prontamente devastada pela crítica (no agregador Rotten Tomatoes, o filme amarga só 26% de aprovação).
Completando 15 anos de lançamento nesta quarta-feira (16), Motoqueiro Fantasma não se tornou um bom filme graças ao passar dos anos, mas certamente se tornou mais capaz de divertir o público graças a esse… Afastamento histórico. Eternamente grudado à pecha de fracasso, o longa-metragem guarda algumas surpresas deliciosas em elementos que se tornaram atemporais em sua comicidade não-intencional, e o Omelete lista abaixo aqueles que fazem dele um ótimo exemplar de bons filmes ruins que valem a revisita.
NICOLAS CAGE
Fã confesso de quadrinhos, o astro foi por anos especulado e cortejado em diversas produções inspiradas em propriedades da DC e da Marvel. Além de quase ter protagonizado um filme do Superman dirigido por Tim Burton, nos anos 1990, Cage tirou seu sobrenome artístico do personagem da Casa das Ideias Luke Cage, nomeou seu filho Kal-El e tem tatuado na pele o próprio Motoqueiro Fantasma que interpretou no filme de 2007 (e na esquecível sequência/reboot Motoqueiro Fantasma – Espírito de Vingança, de 2011). Vê-lo pela primeira vez encarnando um herói (ou anti-herói) das páginas é um deleite, mesmo que diferente do esperado.
Na pele de Johnny Blaze, Cage parece muito menos preocupado em honrar qualquer legado que o personagem tenha desenvolvido nos quadrinhos do que divertir o público. Isso é providencial para quem assiste ao filme hoje em dia, sem a pressão de honrar o personagem-título: com caras e bocas diversas, maneirismos bizarros a rodo e sua própria interpretação de como um emissário do inferno que é uma caveira em chamas deve se mover, o ator carrega o filme nas costas com seu carisma e sua excentricidade. Por si só, já vale a assistida.
JUJUBAS E THE CARPENTERS
Dentro das bizarrices capitaneadas por Cage estão duas que são absolutamente irresistíveis: o inexplicável vício de Johnny Blaze por jujubas e sua total devoção ao corpo de trabalho da dupla musical americana The Carpenters. A primeira garante cenas que transcendem o conceito de cinema, onde Cage entrega falas enquanto enche a boca de doces e ri de desenhos dos anos 1940 em preto e branco. A segunda oferece uma das antíteses mais ricas da produção ao que pensamos serem clichês da vida real: enquanto lutadores profissionais entram em ringues e octógnos ao som de rock pesado, ou rap agressivo, um piloto de moto que desafia sua vida rotineiramente bomba sua adrenalina ao som de… reflexivas baladas de amor. Um toque de aleatoriedade tão doce quanto uma jujuba!
ESSE FILME DEFINITIVAMENTE TEM O MEPHISTO
A primeira década dos anos 2000 eram outros tempos, e produções inspiradas em quadrinhos não nasciam com o peso de ocultar milhões de easter eggs e referências que as ajudariam a se vender. Logo, diferente do que aconteceu à Marvel Studios em WandaVision, Loki e provavelmente acontecerá com Doutor Estranho no Multiverso da Loucura, em Motoqueiro Fantasma, ninguém teve de ficar encontrando Mephisto onde não tinha: o tradicional demônio e seus pactos faustianos esteve sempre lá, em primeiro plano, interpretado com elegância pelo veterano Peter Fonda (Easy Rider). Pode não ter sido a versão dos sonhos dos fãs — e não foi — mas pelo menos ninguém ficou chateado com supostas promessas não cumpridas.
OS VISUAIS SÃO MANEIROS
Se tem algo que se manteve um ponto positivo constante de 2007 até aqui, são os visuais maneiros e efeitos especiais mais que competentes que Motoqueiro Fantasma traz à tela. Talvez, porque foram o principal (único?) foco do diretor Mark Steven Johnson (Demolidor, outra bomba menos pior do que lembramos, da época) na hora de fazer o filme: “O Motoqueiro Fantasma era um dos personagens mais interessantes visualmente e, na minha opinião, o mais cool”, afirmou o cineasta sobre sua escolha de tocar o filme da Sony.
Essa reverência fica clara nas tomadas incríveis do Cabeça de Caveira em sua moto demoníaca, retorcendo com calor prédios, carros e parquímetros. Quando usa a moto flamejante para escalar um prédio, ou até rodar sobre as águas, é difícil não imaginar páginas dos quadrinhos ganhando vida. E não se pode criticar a inventividade (e o toque no melhor estilo Sam Raimi) na hora de ilustrar o fatal golpe do “Olhar da Penitência”. Ainda que numa chave “filme B com orçamento de filme A”, cada um desses momentos ajuda a compensar a trama irritantemente previsível e a falta de química que quase todo integrante do elenco tem um com o outro.
SAM ELLIOT COMO O CAVALEIRO FANTASMA
Falando em química, se ela inexiste para o casal de protagonistas vivido por Cage e Eva Mendes (Hitch – Conselheiro Amoroso), ela sobra nas interações do protagonista com o veterano Sam Elliot (O Herói). Em uma relação de tutor e pupilo que enche os olhos em seu ápice, o astro de diversos faroestes encarna o Cavaleiro Fantasma, Carter Slade. Um antecessor de Blaze no papel de arauto de Mephisto, o personagem mistura o visual hardcore do Motoqueiro ao dos caubóis, cavalgando um cavalo de ossos flamejante em uma das cenas mais maneiras que uma produção da Marvel já levou às telonas.
JÁ FALAMOS… NICOLAS CAGE?
Não é por falta de outra coisa, mas porque o cara é tão bom que merece lembrete: por pior que Motoqueiro Fantasma seja, é um filme que traz o astro ganhador do Oscar se divertindo, ousando, andando de moto e saltando por helicópteros (de mentira) enquanto atravessa um campo de futebol americano. Se isso não compõe um ótimo filme ruim, não sei o que faz.
Fonte: Omelete.